6 de maio de 1996
Entro em casa, coloco meu casaco sobre o sofá (algo que minha esposa odeia e certamente irá reclamar quando chegar), tiro meus sapatos e deixo minha maleta apoiada na cadeira da sala de jantar.
Minha cabeça dói.
Foi um dia cansativo no trabalho, um daqueles dias que a gente tem que se desdobrar em vários personagens diferentes, aquele que produz, aquele que cobra e o que faz acontecer. Felizmente, eu amo dias corridos e movimentados, nunca gostei de ficar parado num mesmo lugar.
Como outros dias movimentados no trabalho, o dever nos segue até em casa e eu lembro, entre um latejar e outro da minha cabeça, que preciso verificar a pasta na minha maleta e dar uma olhada em arquivos e algumas imagens.
Abro a maleta e percebo que esqueci a pasta. Deve ter ficado em cima da minha mesa no escritório. Droga. Lembro mais ou menos das exigências dos clientes, mas preciso do material artístico, de imagens. Sigo até a velha estante de livros, meio empoeirada e com os livros organizados sem muito cuidado (trabalhando o dia inteiro, quem tem tempo de ler?) passo os olhos rapidamente, o catálogo deve estar aqui em algum lugar.
Enquanto estou tentando me lembrar a cor do livro, para facilitar minha busca, meus olhos param em um pequeno exemplar azul, que eu sei que já vi antes há muito tempo atrás, mas não consigo me lembrar. Minha cabeça dói sem parar agora.
Tiro o livro da estante, pequeno, com a capa soltando, e tomo cuidado para abri-lo. As páginas estão um pouco rasgadas em alguns cantos, mas ainda consigo ler perfeitamente a primeira página “turma de 1956”. Nossa, 40 anos atrás.
Será que é mesmo o que eu penso que é?
Continuo folheando as páginas pouco a pouco, vejo meu nome inteiro, idade, um endereço distante em que outra família deve morar agora. Vejo então o nome de minha mãe e meu pai, que já deixou todos os endereços, mas seu nome não se apaga (nem daqui e nem do meu coração).
Uma lágrima escorre (repito mentalmente que é alergia a tanta poeira, mas ninguém deveria mentir pra si mesmo não, é?)
Continuo virando as páginas, como a gente faz com a vida, meio por obrigação, todas elas marcadas pelo tempo, como a vida faz com a gente.
Vejo minhas notas, sempre boas em artes e literatura, razoáveis em matemática, mas péssimas em ciências. Viro a próxima página e percebo algo caindo, uma mancha no chão. Me abaixo e percebo que o conteúdo está do outro lado. A foto da turma. Observo atentamente cada rosto, cada olhar, tento me lembrar daquele dia.
Passo algum tempo sentado, com as costas na estante, lembro vagamente de todos nós sentados em sala, fazendo bagunça, como de costume. Alguns jogavam bolinhas de papel, outros aviãozinhos, dois meninos brigavam no fundo, Éster comia escondido, e Lílian era a única tentando copiar o que estava escrito no quadro.
A professora, que se chamava Lúcia, chegou atrasada naquele dia, sua mãe estava doente e ela precisou acompanhá-la ao hospital. Lembro que ela entrou na sala e todos ficaram quietos, ninguém nunca desafiava a professora. Lílian continuou escrevendo calmamente, ela sabia que não estava fazendo nada de errado. Bernardo e Antônio continuavam brigando no canto da sala, um tinha escondido o carrinho do outro, e tinha esquecido onde colocara (clássico). Éster enfiou seu bolinho com calda dentro da mesa, mas não sem antes deixar cair na blusa. E por fim, alguns meninos correram para suas carteiras, enquanto as meninas abriam seus cadernos.
A professora, muito serena naquele dia, embora com um ar de tristeza, não nos repreendeu, só disse “Hoje é dia de foto”. Muitas comemorações e palmas foram feitas, afinal, registrar um momento único não se faz todo dia, ainda mais atualmente, que mal paramos em casa.
Nos organizamos para a foto no fundo da sala, mas a professora não gostou do que viu, fez uma careta e disse “vocês todos precisam de uma arrumação”. Buscou uma roupa no departamento de teatro para Éster, que tinha sujado a blusa, refez o pequeno topete de Antônio, que tinha caído durante a briga e penteou o cabelo das meninas. Todos prontos ficamos em posição, mas demoramos alguns minutos antes que todos parassem de conversar e ficassem bem parados, sorrindo.
Sou o único com meias diferentes na fileira da frente. Lílian está de óculos de um lado da professora e do outro está Éster usando uma roupa totalmente diferente.
Penso onde eles estão agora. Mantenho contato com Antônio e Éster, sei que Lílian é deputada em algum estado do país, Santa Catarina talvez. Bernardo morreu em um acidente de carro, me disseram, e muitos seguem suas vidas normalmente, em vários endereços diferentes pelo mundo.
Muitas lembranças entre nomes e números, alguns já apagados do mundo embora ainda estejam escritos em meu livro.
Uma sensação de conforto me preenche e percebo que minha cabeça já não dói mais.
Bárbara Lobianco Silveira
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